Canivete suíço neandertal impressiona arqueólogos
Arqueólogos que escavam a Caverna Scladina, na Bélgica, identificaram quatro instrumentos feitos a partir de uma única tíbia de leão-das-cavernas, datados de mais de 130 mil anos. O estudo, publicado na revista Scientific Reports, descreve os objetos como ferramentas multifuncionais semelhantes a um “canivete suíço” pré-histórico.
As peças apresentam polimento, remoção precisa de lascas e encaixes que confirmam fraturas intencionais. Segundo os pesquisadores, o padrão detalhado de confecção indica planejamento, habilidade técnica e uso prolongado pelos neandertais que ocuparam o local durante o Pleistoceno.
A análise microscópica mostrou que uma extremidade do osso funcionou originalmente como cinzel, adequado para talhar madeira ou pedra. Posteriormente, o mesmo fragmento foi retrabalhado e se tornou um retocador usado para afiar lâminas líticas, revelando reaproveitamento sistemático do material.
Os quatro artefatos provêm da mesma tíbia de Panthera spelaea, espécie de leão extinta que viveu entre 700 mil e 12 mil anos atrás. Dois fragmentos se encaixam perfeitamente, demonstrando que o osso foi dividido em segmentos planejados para obter formatos específicos.
A equipe argumenta que a escolha desse osso não foi casual. O tamanho, a densidade e a geometria da tíbia ofereceriam resistência mecânica superior, condição essencial para tarefas de corte e percussão. As etapas de produção seguem a mesma sequência vista em outras ferramentas ósseas da caverna.
Os pesquisadores levantam duas hipóteses para explicar o acesso aos felinos. Os neandertais podem ter caçado os animais para extrair matéria-prima e carne, ou coletado carcaças abandonadas por predadores. Há ainda a possibilidade de um valor simbólico associado ao leão, sem evidências conclusivas até o momento.
Registros anteriores sugerem que os neandertais esfolavam grandes carnívoros, mas nunca havia sido descrita a transformação de ossos de P. spelaea em utensílios. A nova evidência amplia o entendimento das interações entre esses hominídeos e os felinos, apontando relações que vão além da simples competição por presas.
Para o estudo, foram realizadas análises macro e microscópicas, tomografia computadorizada e comparação com coleções experimentais modernas. As técnicas confirmaram marcas de impacto, desgaste por uso e polimento manual compatíveis com atividades de retocar lascas de pedra.
A Caverna Scladina tem fornecido materiais cruciais sobre o comportamento neandertal desde a década de 1990. Achados anteriores incluem restos faunísticos variados, ferramentas de pedra e vestígios de fogueiras que ajudam a reconstituir rotinas de caça, processamento de carcaças e ocupação sazonal.
Os autores destacam que a produção de ferramentas com ossos de predadores aponta para uma gestão versátil de recursos e confirma capacidades cognitivas já reconhecidas em outras pesquisas, como planejamento de longo prazo e adaptação tecnológica a diferentes desafios ambientais.
Canivete suíço pré-histórico amplia visão sobre a espécie
Além da raridade, os artefatos motivam uma revisão do papel dos grandes carnívoros no cotidiano neandertal. A equipe sugere que animais como o leão não eram vistos apenas como ameaça ou fonte de alimento, mas também como fornecedores de matéria-prima para instrumentos complexos.
Os especialistas pretendem comparar os objetos belgas com coleções de outros sítios europeus e asiáticos. A meta é verificar se a prática de transformar ossos de grandes felinos era disseminada ou restrita a grupos específicos. Resultados futuros podem esclarecer padrões regionais de tecnologia óssea.
Com base nos dados atuais, os pesquisadores concluem que os neandertais demonstravam domínio tecnológico comparável ao de populações humanas modernas do mesmo período. A capacidade de reinventar um único osso em múltiplas ferramentas reforça a versatilidade cultural desses hominídeos.
Novas escavações na Caverna Scladina buscam vestígios adicionais que permitam detalhar etapas de manufatura, tipos de uso e possíveis conotações simbólicas. Esse trabalho poderá revelar ainda mais sobre como os neandertais integravam grandes carnívoros ao seu repertório material.